Infância
Para meu pai
Lá vai a Dona Biloca levando uma corvina...
Levei uma surra porque peguei um ovo no galinheiro dela
e disse pra minha mãe que achei na rua...
Lá vem a Odair e o Udinho...
eu sei que eles querem brincar na piscina que eu fiz sooozinho..
-- Ei Lelo, lá vem o Seu Badico lavar os cavalos na praia...
-- Eu sei, mas depois ele vai encher a carroça de tainhas,
vai pôr folhas de bananeira em cima e vai vender lá em Medeiros.
--Paaaai!... deixa eu ir com o senhor lá em Medeiros???.
Como eu gosto de lavar o Sanho... ele é tão mansinho...
-- Pai... o senhor já nadou até a ilha?
-- Pai... depois o senhor me leva até o fundo?
--Pai... eles vão pôr de novo a rede hoje?
-- Pai... depois vamos tomar garapa lá no Seu Bebé?
Infância... a indelével imagem da vida
o território mágico da alma
lembrança viva e peregrina que flutua pelo tempo.
Ah! essa salgada saudade dos braços fortes de meu pai
a levar-me sobre os ombros entre as ondas.
O salto, o mergulho, o torvelinho das águas
minha festa, meu delírio.
Meu mar, meu céu, meu pão de liberdade
meus sete anos correndo atrás das gaivotas
perambulando entre as canoas que chegavam
meus pés vestidos com pantufas de espuma
a chutar seus densos flocos pelo ar.
As estrelas do mar semeadas ao longo dos meus passos
os siris entrando em seus buracos
os maçaricos andando ligeirinhos pela praia
as redes chegando lentamente com o cardume aprisionado
arraias, bagres, cações
espadas, águas vivas, caranguejos
os pescadores repartindo os peixes agonizantes
os baiacus mortos na areia
os restos do arrastão espalhados sobre a praia
meu samburá repleto de peixinhos.
Ah, a canção intermitente das ondas
o poético itinerário das velas levadas pelo vento
o vôo vagabundo das aves litorâneas
o dorso escuro dos botos surgindo de quando em quando sobre as águas.
a maré alta da tarde apagando as marcas da manhã
a minha lagoinha lá perto da ponte
o meu mangue povoado de siris-goiá
meu pai tirando ostras
o rio desembocando lá na barra
a chegada das tainhas no inverno.
Ali morava minha infância
ali, e na imensurável morada do horizonte...
Meus olhos despertavam nas pálpebras entreabertas da aurora
e partiam com os mastros que sumiam na distância.
Vagavam no caminho melancólico do crepúsculo
no ocaso das tardes e na penumbra
na sedução da lua cheia sobre o mar.
Ah, Piçarras!... Piçarras!...............................
Não eras ainda esse moderno balneário
e a tua praia era somente minha o ano inteiro.
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As velas da minha infância,
arriadas pelo tempo, já não saem pra pescar.
As redes daqueles anos,
abertas qual flor nas águas, chegam vazias do mar.
Os cardumes de tainhas,
ligeiras como corisco, já não chegam pra invernar.
As águas vivas do rio,
hoje carregam chorando, seu veneno para o mar.
Meu manguezal de menino,
berçário de tantas vidas, foi inteiro loteado.
Minhas canoas à vela,
poemas soltos ao vento, hoje navegam roncando.
O lago era um ovário
cujo canal dava ao rio, e tudo foi aterrado.
Progresso... que desencanto!!!
sou um estranho nesse ninho, sou uma infância chorando.
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Ó mar, ó mar
procuro em vão meus rastros na areia
e por isso meus passos já não serão como um regresso...
Me restará, contudo, sempre a tua eterna imagem,
tua beleza amanhecida e retocada pelo sol e pela brisa,
tuas verdes planícies que espraiam o mundo.
Resta-me o teu sabor primordial
“o sal da vida”
linfa incorruptível
ventre profundo que dia a dia reinaugura a maternidade planetária.
Restam-me tuas noites pontilhadas pelos faróis do mundo
por Sírius, Antares, Aldebarã...
por todo o firmamento constelado
e pelo esplendor dos plenilúnios.
Volto saudoso aos meus mares
porque sempre haverá um leste e um sul magnético no meu peito
apontando-me o encanto desses íntimos recantos.
Aqui, uma pequenina praia entre pedras e penhascos,
ali, a visão imensa da baía com seus barcos e canoas,
além,o grito alado das plumagens que voam lentamente sobre as ondas
ao longe, o pesqueiro solitário que demanda as águas fundas.
Relembro este molhe de pedra que avança sobre o mar
do farol da barra e desta paisagem soberana
e da minha adolescência cruzando a nado esta corrente.
É o meu Itajaí-Açu desembocando calmamente no oceano
neste mar tão verde desta manhã de sol.
Meu olhar ancora ao longe, nos navios fundeados
e navega, mais além, pousado no mastro esbelto de um veleiro.
Mar, ó mar
restará sempre o teu murmúrio a embalar o mundo
a voz inaudível das profundidades orientando a rota dos cardumes
a tua gestação incessante de criaturas
a força imponderável das correntes
a pontualidade das marés
os teus ciclos arquétipos que sustentam a vida.
Mar, ó mar
basta-me hoje o que já me deste desde sempre...
a tua imensidão tatuada nos meus olhos,
verde enseada onde aportou meu lírico destino.
Esses teus encantos, as tuas extensões, essa totalidade...
todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese dos meus versos,
para dá-la ao mundo na expressão mais bela da poesia:
a face deslumbrante da esperança.
Manoel de Andrade
Piçarras-Itajaí, fevereiro de 2005