AMNÉSIA poema de jb vidal
saio
carros em velocidade
freadas atropelos
salto para trás
sinal amarelo
e tudo passa
verde e tudo passa
tudo passa no vermelho
merda
a guerra está declarada
homens e máquinas
em estranhos carinhos
trombadas
carnes e ferros retorcidos
num abraço inseparável
entre emoções e o nada
nas calçadas
passa a multidão
e não me vê
atiram-me
de um lado para outro
me equilibro e sigo
vacilante
com mais ou menos
oito anos de idade
uma fome corre
mãos ágeis
levam minha passagem da volta
as lágrimas brotam
de raiva e poluição
chaminés malditas
conjuntivite crônica
pulmões pretos
ar ar
onde estás
a praça
sim na praça
talvez eu possa
repousar este corpo
ferido na alma
seringas quebradas
latas vazias
restos humanos
jogados nos bancos
o chão
cheira mijo e merda seca
o sol escaldante
faz ferver o asfalto
fumaça óleo queimado
suor
asfixia
as árvores
pedem sombra
procuro com os olhos
encontro o inferno
mudaram tudo
a praça
já não é mais
haja alma
ali
com os pensamentos
reagindo às marteladas
do bate-estacas
a noite
me abraça
atento perscruto
famintos pixotes
prostitutas
homicidas
cafetões
bêbados
drogas
mendigos
por todo lado
o éter exala forte
sirenas
corre-corre
gritos
estampidos
junto à mim
um corpo cai
seguramente terá
as homenagens das manchetes
entro num bar
sento à um canto
não bebo
a fome de oito anos
levou a passagem
que poderia transformar-se
num gole ardente e cremoso
observo que ali estão
cantadores violeiros poetas
vou sorvendo
um pouco da vida
de cada um
me animo
questiono
reflito
sorrio
percebo que na arte
a vida sofre, suavemente
saõ paulo 1976.
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