quinta-feira, 18 de setembro de 2008

PRELÚDIO


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PRELÚDIO

 

© DE João Batista do Lago

 

Sei-te senhor da sabedoria

Sei-te ordenador das luzes

Sei-te fonte de toda caloria

 

Sabes tão pouco do meu ódio

Sabes tão pouco da praga que te jogo

Quando surges, a leste, no teu exórdio:

Ladras manhãs que me roubam.

 

Prefiro teu epílogo quando queda no oeste!

 

Neste instante todas luzes brilham

Todas as estrelas cintilam e bailam sob os telhados

Todos os astros se acomodam

 

É quando surge minha aurora:

Desnuda!

Voa em minha direção e me abre os braços

- e as pernas! –

E num só enlaço me leva ao mais profundo dos mundos

Sol de todas as fontes de felicidades...

 

Mesmo que na manhã seguinte renoves teu discurso

- ainda assim –

Aguardarei o poente da tua sabedoria

Donde surgirá em beleza esplêndida

Nua

Carnuda

Desnuda

Trazendo-me todos os louvores e augures

A mais bela amante da minha alegoria...

 

(E cantamos na inteira noite o prelúdio das cigarras!)

 

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Nauro Machado

POESIAS DE NAURO MACHADO



Apenas uma Coisa


Existe amor?
Palpável como o dia,
como a matéria com que é feito o objeto 
chamado mesa, catedral ou baço 
nitrindo em tantas coisas?

Como amar
esta incorpórea substância carnal, 
este lampejo de chão no infinito? 
Existe amor?

Palpável como a terra? 
Debaixo ou sobre a terra, ainda carne, 
algum finado saberá do amor, 
essa chama votiva a brilhar ainda? 
Amou Torquato a Maria? Amou deveras? 
Digam-nos os anjos corcundas do além, 
a ave agoureira ao céu crucificada, 
o revoar de asas na papal coroa.
Amou Torquato a Maria, ainda carne? 
Ama Maria a esse pó apenas nome 
legado aos filhos como letra morta, 
como moeda gasta em mão mendiga? 
Chupando um dedo só, o amor se alimenta.





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Como te massacraram, ó cidade minha!
Antes, mil vezes antes fosses arrasada 
por legiões de abutres do infinito vindos 
sobre coisas preditas ao fim do infortúnio 
(ânsias, labéus, lábios, mortalhas, augúrios), 
a seres, ó cidade minha, pária da alma, 
esse corredor de ecos de buzinas pútridas, 
esse vai-e-vem de carros sem orfeus por dentro, 
que sem destino certo, exceto o do destino 
cumprido por estômagos de usuras cheios, 
por bailarinos bascos sem balé nenhum, 
por procissões sem deuses de alfarrábios velhos, 
por úteros no prego dos cachos sem flores, 
por proxenetas próstatas de outras vizinhas, 
ou por desesperanças dos desenganados, 
conduzem promissórias, anticonceptivos, 
calvos livros de cheques e de agiotagem, 
esses lunfas políticos que em manhãs — outras 
que aquelas já havidas, as manhãs do Sol —
saem, quais ratazanas pelo ouro nutridas, 
apodrecendo o podre, nutrindo o cadáver. 
Se Caim matou Abel e em renovado crime 
Abel espera o dia de novamente ser 
assassinado em cunha de rota bandeira, 
que inveja paira em Tróia ou em outro nome qualquer 
da terra podre e azul de água e cotonifícios? 
Mutiladas manhãs expõem-se nas vitrinas 
de sapatos humanos mendigando pés, 
de vestidos humanos mendigando peitos, 
de saias humanas mendigando sexos.
Esta é Tróia!, o vigésimo século em Tróia, 
blasfemam as fanfarras de súbito mudas 
nos ouvidos mareando a pancada da Terra.





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O Parto


Meu corpo está completo, o homem - não o poeta.
Mas eu quero e é necessário 
que me sofra e me solidifique em poeta, 
que destrua desde já o supérfluo e o ilusório 
e me alucine na essência de mim e das coisas, 
para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro, 
trazer-me à tona do poema 
com um grito de alarma e de alarde: 
ser poeta é duro e dura 
e consome toda
uma existência.





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Maldita a vida me seja, 
três vezes maldita seja 
a vida que me desastra 
e que por ser-me finita, 
três vezes seja maldita 
e amaldiçoada madrasta.

Quem me fez como um qualquer, 
dormindo aonde estiver, 
saiba deste desprazer, 
para sempre e desde saiba, 
para que o seu Ser não caiba 
na pequenez do meu ser,

que eu não pedi para estar 
com minhas pernas no andar, 
com minha emoção a sentir 
este universo que tapa 
a minha boca num tapa 
e a minha língua sem Ti,

essa coisa que fede a iodo, 
como a água do mar ou do 
envelhecimento o rim, 
essa coisa que derrama 
seu púbis velho de chama 
a extinguir-se quase ao fim,

corpo de Deus! Corpus Christi! 
Viste-O algum dia? Tu O viste 
sequer um dia como tu? 
Integral e à dor exposto, 
desde o cio ao suor do rosto, 
desde impotente até nu?

Os meus membros são crepúsculos! 
São sangue e iodo os meus músculos, 
é iodo e sangue a minha cruz. 
Por que não nasci não sendo? 
Por que, ao amanhecer, acendo, 
noutra treva, cega luz?

Se além da terra existe ar, 
se além da terra ainda há 
por menor que seja, um seja, 
como à noite volta o dia, 
como, ao corpo, o que o procria, 
como, em mim, meu ser esteja!

Dentro ou fora, qual gaveta, 
para que, em mim, o ser meta 
quem, em mim, é este meu ser, 
olho, em volta, à minha volta, 
e olho nada — só o que solta 
de qualquer um: quem ou o quê?

Nada é, pois tudo se sonha. 
E se alguém me falar: ponha 
tudo o que lhe resta, e resta 
no que, ao pôr-se, se me põe, 
para que em mim meu ser sonhe, 
vivo morto — e a morte empesta!

Como dar à vida pôde 
o nada ser que sou de 
outro feito pelo ser?
De outro ser, igual a mim,
mas de outro início a outro fim, 
noutra vida até morrer?

Ó envelhecer do meu estar! 
Da leitura de Balzac, 
de La Comédie Humaine, 
se passaram tantos anos 
nos malogros desenganos, 
sem disfarce ou mise-en-scène.

Bela Eugénie Grandet:
sois lembrança a anoitecer 
pelas tardes do meu Carmo, 
quem me traz a quem não sou 
na usura do pai Goriot 
que me a mim dá, para dar-mo

no meu duplo a ser mais dois, 
quais búfalos que são bois, 
ao mar meu a ser mais mar de 
ontem que ao ser-te, alma, foi-te, 
nas noites que são mais noite, 
nas tardes que são sem tarde.

Só me lembro das andorinhas, 
que hoje são luas-vinhas 
que iam e vinham às seis, 
só me lembro das sequazes 
na imprecisão de alguns quases, 
na distância de vocês!

Róseas ruas da memória, 
róseas ruas hoje escória 
que a soçobrar mais me sobe, 
afundai-me na lembrança 
hoje cravos da criança 
que meu cadáver descobre.

Como, à noite, acendo a lâmpada, 
para imitar (rampa da 
noite) uma inútil manhã, 
como o como que mais como, 
assumo, na idéia, o pomo 
da primitiva maçã.

Assumo o dia original.
Nascimento à morte igual, 
nascimento em morte assumo 
nesta página onde, em branco, 
minha vida inteira arranco 
do nada em que subi. E sumo.

E sumo a sós. Mas prossigo:
"na idéia é bem maior o trigo
que na boca o próprio pão, 
na idéia janto a sós, comigo, 
o pão real que mastigo 
feito de imaginação".

Azul manhã em contumácia! 
Negra noite, azul, te amasse 
a idéia sem pensamento, 
te amasse a própria Idéia 
reduzida a uma hiléia 
sem ar, floresta, rio, vento.

Locador de um condomínio 
frustrador de um hímen híneo, 
frustrador de um hímem são, 
locador que loca um louco, 
de carne e ossos sou reboco 
deste barro em maldição.

Tudo é farsa, menor dor. 
Sou, em mim, o que me sou 
desde o ventre que me fez. 
E contemplo a arraia, e raia 
dela, como de uma praia, 
a noite toda. Ei-la aqui. Eis:

andaime, sucata, ferro, 
vagido, vagina e berro, 
viatura e papelório, 
passa tudo, e é a viatura 
conduzindo à sepultura
meu ser morto. E sem velório.

Pois viu a terra e além bebeu-a, 
pois viu o tempo e disse: é meu, à 
solidão cerzindo a roupa 
onde, se me dispo, visto 
o sexo nu de algum Cristo 
que, despido, não me poupa.

Dez anos de coito cego 
são as metáforas que lego 
à solitária da escrita, 
aonde não chega ninguém 
exceto o vazio que vem 
de uma montanha infinita.

Ao ouvir da tarde: fracasso!, 
conquanto, vergando, os braços 
dissessem: pára, enfim finda! 
e morre, ó alma desgraçada, 
eu ousei retornar do nada, 
ousei retornar ainda.

Abandona, ó rei, abandona 
o abono de qualquer cona 
além do sangue e da queixa. 
Cerca a tua casa e a mura 
com o suor da tua estatura, 
e deixa o remorso, deixa-o!

Senhor do teu sofrimento, 
vai-te com o diabo e o vento, 
vai-te com a noite e o monte. 
E fala, ainda que mudo, 
que, do nada, igual a tudo, 
sobre ambos nasces. E põe-te!

Elimina todo se
da pretensão de existir 
na existência que é demérito, 
e no não haver nascido 
elimina-te existido, 
elimina-te pretérito!

Eliminar o talvez.
Não saber dia, hora ou mês, 
não saber até o minuto 
em que me vim sendo feito 
plantando a morte no peito 
e o espinhaço no meu fruto.

Por que o vemeversoverbo
da herbívora erva que eu erbo 
no meu plantio masculino, 
inverte o chão do seu galho 
arrancado do assoalho 
repicando como um sino?

Ter olhos-Deus! olhos-sóis
tem-no o Deus que cego a sós, 
tem-no o horizonte a pôr-se 
como colírio em dordolhos, 
tem-no quem me olha nos olhos 
como se cego eu já fosse!

Ah!, se a pedra me fizesse 
fazer-me cobrir quem desce 
à região do ser meu se, 
para não haver nascido 
ou o houvesse enfim já sido 
sem que eu dissera: nasci!





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Fila indiana


Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros 
na perícia dos próprios dramas)

um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século 
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.


De O Calcanhar do Humano (1981)





A sentença


Ó solidão, minha mãe
em toda parte do corpo,
meu escaler sem esperança
no oceano dos naufrágios.

Só as árvores estão vivas
no meu espírito que é morto.
Ó sinos, pombas errantes
no bronze da eternidade!

Remai, tempo de amargura,
às praias sem amanhã.
Ó solidão, minha mãe,
medusa erguida sem pai.





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Balança comercial


Troco sóis pelas naus,
os são pelos loucos troco,
na embriaguez com que soco
minha fúria no meu caos.

Tudo é uma questão de troca:
noves fora, restam nove,
até que outro alguém nos prove
que Deus é um dente sem broca,

que Deus é um maxilar 
independente do alvéolo
tal como independente é o 
ser do seu próprio estar.

Onde estamos não nos cabe,
onde estamos não comporta
a nossa alma que é uma morta
que do corpo nada sabe.

Ó desejo para fora
a romper-nos desde o dentro!
Ah, sairmos do nosso centro
para sempre e desde agora!

Abandonarmos casca e ovo,
abandonarmos a casca,
é um desejo que nos lasca
para quebrar-nos de novo.

Sermos gema, sem ser clara!
Sermos o Ser que É, não o que é
uma coisa chã e qualquer
nesta cara, a mesma cara!

Termos olhos, que são dois,
termos olhos, só dois a esmo:
troco tudo por uns bois
e até a alma comigo mesmo!

Troco tudo, como troco,
se trocar eu me pudera,
esta verdade quimera
do sonho com que me soco.


De O Signo das Tetas (1984)





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Prece à boca da minha alma


Não te transformes em bicho,
ó forma incorpórea minha,
só porque animal capricho
perdeu o humano que eu tinha.

Guarda, do animal, o alheio
esquecimento. E somente.
Mas lembra aquele outro seio
que te nutriu a boca e a mente.

E recorda, sobretudo,
que não babas ou engatinhas,
a não ser quando te escuto
pelos becos, dentre as vinhas.

Vive como um homem morre:
em solidão e na esperança.
guardando a fé que socorre
em mim, semivelho, a criança.

Mas não te tornes em bicho,
nem percas o ser humano,
só porque a tara (ou o capricho)
deu-me este existir insano.

De Do Eterno Indeferido (1971)